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A catástrofe climática no Rio Grande do Sul: a enchente do neoextrativismo diante das solidariedades insurgentes

Felipe Mattos Johnson



A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, grupo de teatro popular nascido em 1978 em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, inaugurou em 2024 a peça Ubu Tropical, teatro de rua inspirado em Ubu na Colina (1901), de Alfred Jerry. A peça narra as terríveis andanças de Pai Ubu, figura autoritária que se autoproclama rei da Polônia através de um rastro de matança, corrupção e trairagem. Na cena 3 da peça, intitulada “Mato todo mundo e vou embora”, o rei bufão manda para sua gigantesca pança nobres, juízes e financistas do reino. Nada escapava a fome insaciável de Pai Ubu, que atropelava o mundo buscando “engolir tudo e todos”.1 No final, ao chegar no Brasil, é surpreendido pela figura de Abaporu, “com os pés gigantes plantados na terra, canibal e antropofágico, que é capaz de devorar a cultura, se apossar dela reinventá-la”. Abaporu impede que Pai Ubu siga sua sanha carniceira. Nas ruas de Porto Alegre, Pai Ubu, sua tropa e seus súditos transitavam aparentando estarem cobertos de um lamaçal, como que saídos de uma grande enchente no dia 21 de abril. Menos de 1 semana depois, as enchentes tomariam conta do estado e da própria capital gaúcha.





Entre o final de abril e o início de maio, o estado do Rio Grande do Sul (RS), na região sul do Brasil, foi palco da maior catástrofe climática de sua história. Uma enchente sem precedentes, após fortes chuvas nunca antes vivenciadas nesta época do ano, devastou 401 dos 497 municípios da região, resultando em 1,4 milhão de pessoas afetadas. Os números não param de crescer e, neste momento, as estimativas são de mais de 240 mil pessoas desalojadas. Há muitos refugiados climáticos em abrigos, além de, no mínimo, mais de 100 mortos, centenas de feridos e desaparecidos e quase 700 mil pessoas sem água. Em outubro de 2023, um evento semelhante arrasou diversos municípios do mesmo estado. Desta vez, foram 14,2 trilhões de litros d’água somente entre os dias 1º e 7 de maio, equivalente a metade do reservatório da Usina Itaipu, segunda maior hidrelétrica geradora de energia do mundo2. O Guaíba, que margeia Porto Alegre e se comporta hora como rio, hora como lago, chegou ao nível histórico de 5,33 metros, altura que pode aumentar com a continuidade das chuvas atualmente em curso.

A catástrofe é um reflexo direto do saque desenfreado provocado por grandes empresas capitalistas e seus representantes no comando do Estado, vinculados ao latifúndio corporativo, à especulação imobiliária, ao extrativismo e, portanto, a financeirização e mercantilização da vida. O Rio Grande do Sul é um estado cujos biomas do Pampa e da Mata Atlântica vem sendo destruídos pela mineração, pelas monoculturas de soja e eucalipto e pela pecuária. Além disso, os governos estaduais e municipais das cidades atingidas, com aval dos diferentes governos federais de turno, foram responsáveis pela derrubada de matas ciliares, assoreamento de rios, destruição de Áreas de Preservação Permanente, violação dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais, além de venderem as cidades para a privatização das empresas de água, luz e imobiliárias.





Eduardo Leite, governador do RS, ignorou sistematicamente alertas de institutos e pesquisadores que apontavam a iminência de eventos climáticos extremos, como estiagens e inundações, além de flexibilizar 480 pontos da legislação ambiental junto a outros deputados, enquanto ampliava a exportação de soja. Além das já citadas privatizações da água e luz, a saúde também foi precarizada a privatizada, assim como as áreas próximas ao Rio Guaíba com já precários sistemas de contenção de enchentes. Não há um plano emergencial claro. A própria categorização oficial do Guaíba como Lago implica na flexibilização das leis ambientais, que permitiram a devastação nas suas margens e proximidades.

Os povos indígenas do Rio Grande do Sul, majoritariamente dos povos Mbya Guarani, parte do grande povo Guarani, povo Kaingang e Xokleng, já somam mais de 8 mil famílias atingidas e 80 comunidades em estado de emergência. Algumas retomadas de territórios ancestrais na região de Porto Alegre, como Pekuruty, tiveram suas casas destruídas pela prefeitura em meio ao processo de evacuação. Milhares de pequenos agricultores e famílias sem-terra também perderam seus familiares, suas casas, plantações, animais, equipamentos, galpões e cooperativas. O Movimento Sem Terra estima 420 famílias afetadas pelos alagamentos em seus assentamentos e ocupações no estado. No caso dos quilombolas, cujas comunidades em Porto Alegre, capital do estado, somam mais de 100, a situação não é diferente: enfrentam inundações, falta de água e comida e a perda dos locais de habitação e reprodução da vida.


O extrativismo no cerne da catástrofe


As narrativas hegemônicas, seja a nível midiático ou na esfera da política institucional, buscam apresentar um cenário de “conciliação nacional”, onde para enfrentar a enchente, é necessária a união do país. Bajulam militares, divulgam contas para transferências bancárias de doações destinadas a entidades privadas associadas ao governo e fortalecem o panegírico do discurso desenvolvimentista como saída: defendem a reconstrução das cidades para manutenção do mesmo modelo predatório. Mudar tudo para que tudo permaneça igual – coerente com a atual configuração do Governo Federal. Associam a catástrofe climática a causas naturais, escondendo a raiz do problema. A narrativa “unificadora” descaracteriza os responsáveis pela devastação e a vinculação direta do modelo neocolonial de matriz exportadora que viola e mercantiliza as forças vitais para as cadeias globais de acumulação capitalista.

O latifúndio corporativo - maquiado de termos eufemísticos, como agronegócio - e o Estado se preocupam com as perdas de lavouras de soja, que expulsaram indígenas e camponeses de seus territórios para permitir a expansão da fronteira agrícola. O Rio Grande do Sul é o segundo maior produtor de soja do Brasil, sendo a expectativa da colheita em 2024 de 20 milhões de toneladas. Resta apenas 7% do bioma original da Mata Atlântica no RS. Ao mesmo tempo, o centro-oeste brasileiro sofre com uma estiagem também histórica, que impacta as monoculturas, mas não os lucros do seguro rural. Principalmente, no entanto, o contexto impacta os pequenos agricultores e indígenas, alvo da violência no campo na região que figura como uma das maiores do país relativa a repressão da luta pela terra. Nacionalmente, a safra da soja está estimada em 153,9 milhões de toneladas, números que se alinham com o abismo da concentração de terras nas mãos de poucos e na pressão exercida pelo latifúndio contra a vida e a biodiversidade.





A flexibilização das leis brasileiras sobre meio ambiente e direito a terra para povos indígenas e tradicionais acompanha a relação entre o extrativismo e as mudanças climáticas antropogênicas. A legislação é relativizada para permitir que novas áreas sejam integradas às cadeias globais. A recente aprovação do Projeto de Lei 14.701 de 2023, que afronta a Constituição de 1988 no que diz respeito aos direitos indígenas, é um exemplo: com o enfraquecimento das demarcações de terra, as fazendas de monocultura, a mineração e o garimpo podem se alastrar sobre os territórios sem entraves legais. Estes fatos, entretanto, já ocorrem. Porém, na tênue linha entre o legal e o ilegal que caracteriza diferentes pontos da cadeia extrativista. O garimpo na Amazônia comporta-se do mesmo modo, estimulado junto à mineração pelas demandas do mercado internacional por um lado e, por outro, timidamente condenado na esfera pública – e, cada vez mais, confrontado pelas iniciativas de autodefesa e retomada indígena para o controle territorial. É relevante relembrar os vultuosos recursos públicos destinados ao Plano Safra, cujos financiamentos são destinados principalmente ao agronegócio. Para 2023/2024, o governo anunciou um montante de 364,22 bilhões de reais.

O fato de que 20% do território original do bioma amazônico foi derrubado para ampliação de monoculturas, criação de gado e garimpo também possui vínculo estreito com as enchentes no RS e com a estiagem no centro-oeste, dada a forma como os ciclos de chuva são afetados pela capacidade da floresta em regular o clima. A diminuição dos biomas, como no caso daqueles do RS, provoca o aumento da erosão do solo e a redução de sua capacidade de armazenamento de água3. Ao passo que os grandes empresários do latifúndio, em consonância com as diferentes esferas do governo e do Estado dão as mãos para oferecer de forma espetacularizada uma saída paliativa para as enchentes, o povo (e os povos) se organizam de forma autônoma para salvar vizinhos, comunidades, periferias e vidas, enquanto fortalecem a recuperação da terra e dos territórios e estabelecem novas lealdades na memória.


A solidariedade que vem de baixo: só o povo salva o povo


Em meio ao cenário de caos, inúmeras iniciativas populares de solidariedade, ação direta e apoio mútuo tomam conta da cidade face a inoperância e ao descaso dos governos, envolvendo movimentos sociais, movimentos de base comunitária, organizações anarquistas, povos indígenas e tradicionais, terreiros, sindicatos, entre outros. Não pretendemos esgotar as referências no curto espaço deste texto, que são múltiplas. Entretanto, a seguir algumas dessas experiências serão apresentadas brevemente a partir de três categorias principais: povos indígenas, movimentos sociais e quilombolas.

A retomada indígena multiétnica Gah Ré, localizada no Morro Santana em Porto Alegre, é uma recuperação de território ancestral Xokleng e Kaingang, que foi mobilizada por diferentes povos e movimentos. Atualmente é habitada por 42 famílias. Em dezembro de 2022, sofreram tentativa de despejo, que resultou vitoriosa para a comunidade. No local, que estava destinado para a construção de 11 prédios por meio de financiamento de ex-banqueiros, há uma nascente. O Morro Santana também abriga áreas de pampa e mata atlântica, e a nascente desemboca no Arroio Dilúvio, que cruza algumas regiões da cidade. Após 2 anos de resistência, em meio à enchente que tomou conta de Porto Alegre, a retomada se tornou um centro de distribuição de água para as comunidades periféricas do entorno, que padeciam com o desabastecimento provocado pela catástrofe climática. Enquanto isso, as ruas e periferias de Porto Alegre viram crescer filas imensas de pessoas com galões em torno de bicas espalhadas em diferentes zonas urbanas, dada a falta d’água nas casas e mercados.







O MST, por sua vez, iniciou prontamente uma campanha nacional de solidariedade e disponibilizou seus militantes e assentados para, primeiramente, garantir a segurança dos sem-terra nos locais afetados (assentamentos e ocupações); e em seguida, iniciar cozinhas solidárias e centros de acolhimento e distribuição de alimentos, água, roupas, medicamentos e produtos de higiene. Foram dezenas de milhares de marmitas distribuídas pelo movimento para as periferias afetadas pela inundação e aos abrigos para refugiados. Assentamentos na região de Viamão que não foram afetados também passaram a produzir alimentos para outros assentamentos, como no caso de Dourado do Sul, tomado pela enchente: milhares de marmitas e refeições diárias foram preparadas.

Apesar de uma parte relevante da produção de alimentos do movimento ter sido afetada, a autonomia garantida pela produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos e transgenia foi crucial para abastecer o povo desabrigado. As cozinhas solidárias também foram construídas por outros movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que já alertava para o fato de que não há barragem segura - o dia 2 de maio, houve o rompimento da barragem 14 de julho entre os municípios de Cotiporã e Bento Gonçalves durante as chuvas, demonstrando que estas estruturas não estão adaptadas para eventos extremos e tampouco devem servir de base para um modelo energético não extrativista.





O povo quilombola do Rio Grande do Sul, em especial da grande Porto Alegre, se mobilizou para a defesa de suas comunidades, vidas e territórios, assim como para a composição de uma rede de solidariedade fundamental junto as periferias urbanas. Porto Alegre é a cidade com maior número de quilombos urbanos no país, totalizando 11 territórios. É nesta cidade também que foi formada a Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, que vem atuando há mais de uma década no fortalecimento dos povos negros, quilombolas e indígenas, assim como ao lado do povo pobre de Porto Alegre. O impedimento da regularização dos territórios quilombolas pela burocracia estatal e os interesses privados da especulação imobiliária influenciam diretamente no contexto enfrentado por estes territórios durante a enchente.





No mapa acima, é possível visualizar 1) Quilombo dos Machados, em risco iminente de de enchente e falta de abastecimento; 2) Quilombo Kédi, atingido por falta de abastecimento; 3) Quilombo Silva, atingido por falta de abastecimento; 4) Quilombo Mocambo, comunidade atingida pela enchente e desabrigada de seu território; 5) Quilombo Fidélix, idem; 6) Quilombo do Areal, idem; 7) Quilombo Lemos, idem; 8) Quilombo Flores, falta de abastecimento; 9) Quilombo Santa Luzia, falta de abastecimento; 10) Quilombo dos Alpes, falta de abastecimento; 11) Quilombo de Ouro, falta de abastecimento. Exceto aqueles atingidos pela enchente, os quilombos se mantêm como pontos de atuação de uma ampla rede de apoio, voltada para cozinhas solidárias e para o apoio da comunidade do entorno.

O Quilombo dos Machados foi um dos quilombos que se auto-organizou para o apoio mútuo e para a ação direta diante da continuidade do ato necropolítico de matar e deixar morrer, característico de um Estado supremacista branco que relega às comunidades a condição de ficarem a própria sorte no decurso de uma catástrofe. A comunidade, situada no Bairro Sarandi – um dos mais afetados pela enchente na capital -, já foi ameaçada de despejo em 2020, em meio a pandemia do COVID-19. A ação foi movida através da Real Empreendimentos, ligada ao setor imobiliário. A história do Quilombo remete à década de 60-70, quando da chegada da Família Machado em Porto Alegre. Apenas em 2012 a área foi retomada pelos quilombolas.

Durante a enchente, 97% do quilombo sofreu perda total, segundo Jamaica, liderança do Quilombo e da Frente Quilombola. Ele afirmou em entrevistas que as perdas são ancestrais4. A comunidade vizinha se chama Vila Respeito, e o contexto em ambos os locais já era precário, pela segregação socioespacial. A sede do quilombo não foi atingida, e virou ponto de referência no território. Passaram a organizar coletivamente uma cozinha comunitária, receber doações de água potável, roupas, medicamentos, cobertores e produtos de higiene. Todas as doações e produções locais passaram a ser partilhadas com o próprio Quilombo e com moradores da Vila Respeito. Articularam a evacuação dos mais velhos e crianças na iminência da enchente e montaram forças tarefa comunitárias para analisar o grau e a velocidade de subida das águas. Neste ínterim, impediam o pânico generalizado e acionaram redes de cuidado e atenção psicossocial.




Sede do Quilombo dos Machados durante distribuição de alimentos. Foto de Elisa Casagrande.




Sede do Quilombo dos Machados recebe caixas d’água para fortalecer a distribuição de água para os atingidos pela enchente. Foto de Elisa Casagrande.


Retomar territórios para adiar o fim do mundo5


As retomadas territoriais, que se alastram pelo Brasil principalmente através da ação auto-organizada de povos indígenas e tradicionais, também consistem em retomadas dos modos de ser destes povos. E não há espaço, nestes modos de ser, para o extrativismo. Davi Kopenawa, xamã Yanomami que escreveu o livro A Queda do Céu, já expressava ao mundo dos brancos que não há futuro possível para quem planta seus pensamentos nas mercadorias. Xamãs e líderes espirituais de diferentes povos indígenas narram que, desde a chegada dos brancos, a iminência de grandes catástrofes se tornou um fantasma que se avizinha a cada avançar dos saques capitalistas e suas zonas de sacrifício humano e socioambiental.

Quando latifundiários e policiais assassinam Vitor Fernandes Guarani e Kaiowá no massacre da retomada de Guapo’y, em 24 de junho de 2022; Quando latifundiários assassinam indígenas como Nega Pataxó, morta no dia 21 de janeiro após ataque brutal dos milicianos ruralistas do Movimento Invasão Zero contra retomada de terra Pataxó na Bahia; quando matam e carbonizam José Roberto da Rocha, liderança do MST na Paraíba, por lutar pela terra; quando matam Mãe Bernardete, quilombola assassinada na Bahia por lutar por seu território contra a especulação imobiliária; tudo isso são formas de acelerar a catástrofe. São formas de tentar fazer prevalecer os modos de vida e produção capitalistas sobre as ancestralidades e territórios livres. É a marcha de Pai Ubu, banhado do rio de rejeitos de minério de Mariana e Brumadinho, mergulhado na inundação que arrasta e engole a tudo e todos no Rio Grande do Sul. Os executores desta catástrofe, súditos de Ubu Rei, tem nome, sobrenome e endereço, e carregam a cor do sistema de morte que alimenta as engrenagens da acumulação.

As questões que atravessam a catástrofe em curso ilustram a importância das retomadas e ocupações de terra como atos de recuperação da vida e sua potência reprodutiva. De recuperação das próprias forças vitais – termo que aqui usamos em oposição à lógica do “recurso natural” -, cujas lutas territoriais buscam desmercadizar. Estes processos de resistência fazem eco não só com a palavra dos xamãs, mas também com as práticas que apontam os zapatistas como tessituras possíveis na atual conjuntura: el común y la no propiedad6. O desabastecimento de água, luz e alimentação é um convite à rebelião em defesa do comum, que passa pela consolidação de novos laços comunitários forjados na solidariedade popular. A autonomia territorial, a recuperação e a defesa dos biomas, da terra, das águas e florestas será a última bandeira, e os povos mostram o caminho.




 

1 O autor do texto vivenciou a peça nas ruas de Porto Alegre. Algumas informações neste parágrafo que descrevem a peça são retiradas de um livreto distribuído pelo grupo de teatro, produzido pela Tribo de Atuadores. Em especial, os trechos entre aspas são excertos do livreto.

5 Ailton Krenak, filósofo indígena do povo Krenak, escreveu o livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019).

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